21/12/2012

minha carreira de revisora IV

Saindo da Abril, não sei bem o que fiz de imediato. Morava com meus pais, morria de tédio na faculdade, lia bastante, cometia meus poemas juvenis numa linda Hermes Baby que eu tinha (e ainda tenho), fazia oficina de teatro no TUCA, decerto procurava algum emprego. Gostava muito dos livros da Perspectiva, com Auerbach, Jakobson, os irmãos Campos, Octavio Paz, essas coisas. Peguei o endereço da editora na lista telefônica - ficava na Brigadeiro Luís Antônio -, fui lá, me apresentei e pedi emprego. Isso foi em 1972.

Na Perspectiva não tinha vaga, mas na Polígono, que era o braço de publicações técnicas da editora, tinha. Bom, do alto de meus dezessete anos e de minha vasta experiência de revisora que mal somava três meses, livro técnico não me assustava. Fiz o teste, passei, comecei.

Já adianto que tampouco na Perspectiva esquentei assento. Fiquei uns cinco meses, talvez. Mas de lá só guardo lembranças maravilhosas e saí apenas porque meu bicho-carpinteiro de estimação não me dava paz.

Bom, na Perspectiva era um barato. Havia uma sala só para o editorial da Perspectiva e da Polígono. Razoavelmente ampla, com janelões dando de frente para a rua, bem iluminada, uma zona de livros, estantes e papéis. Éramos em cinco, dá pra acreditar? A Mary (Amazonas Leite de Barros), que era a chefe, a Alice, uma nissei que era assistente editorial, o Renato, um outro rapaz e eu. Mary e Alice faziam o copidesque e a preparação, e nós as revisões.

Na primeira semana ou quinzena, só bati prova. Eram tipográficas, e a gráfica ficava na porta ao lado, com apenas duas pessoas: o próprio gráfico e um ajudante, um rapaz novinho, com uma enorme cabeleira arrepiada, de fala mansa e sotaque nortista bem carregado, chamado Plínio, que anos depois se tornou o diretor-presidente da EDUSP (Plínio Martins Filho). Um doce de pessoa.

Uma vez já pus essa foto no Facebook. Foi a única que restou daquela época. Tinha uma também com o Plínio e o chefe dele, mas não sei por onde anda.


Em seguida, comecei com as primeiras provas: trabalhava em dupla com o Renato, mas o sistema era bem diferente da Abril, quase caseiro. Um dia estava lá marcando e ele lendo, falei "Peraí, repete". Ele repetiu. "Não, deve estar faltando alguma coisa", disse eu. "Não faz sentido." Era uma tradução de um livro alemão de engenharia. Nem ele nem eu entendíamos alemão. Pegamos o original e toca a procurar a passagem. Avisei a Mary: "Olha, não pode ser isso. Não sei o que é, mas isso aqui não tem como". Bom, achamos a tal passagem, alguém que entendia alemão (não ali na sala, talvez o Guinsburg ou outro alguém) conferiu, estava com problema mesmo, corrigiram.

O episódio elevou minha moral lá dentro, a Mary ficou contente e foi assim que passei da Polígono para a Perspectiva. Quer dizer, a sala era a mesma, as pessoas eram as mesmas, mas a distribuição das tarefas era diferente. E mais, tchantchan: de revisão de prova passei para revisão de original (a gente diz "original" ou "manuscrito", para diferenciar de "prova", mas era tradução em laudas datilografadas). Ganhei uma mesa só para mim e aí passei a aprender a acompanhar a tradução pelo original e a copidescar o texto. A Mary me passou um livro, deu as diretrizes gerais e foi mais a Alice que me ensinou.

Sempre tive mão muito leve. Olho atento, sim, mas a mão... Corrigia apenas erros gramaticais, conferia se o sentido batia com o do original, completava eventuais omissões, mas no texto propriamente dito não mexia quase nada. Se alguma coisa parecia meio esquisita, consultava a Alice e eventualmente a Mary, e assim ia aprendendo.

Diga-se de passagem que é por isso que não entendo bem um certo frenesi atual de mexerem a torto e a direito em textos corretos e vasados satisfatoriamente. E aqui me lembrei de um episódio relativamente recente, de uns quatro anos atrás: eu andava meio enfastiada de traduzir e uma editora me passou um texto para preparar. Não era tradução, o original era em português mesmo: um artigo de umas quarenta páginas, com uma entrevista, muito leve, interessante, gostoso de ler. Fiz o que achei que tinha de fazer. Ou seja, num texto bom, quase nada - só uma coisinha aqui, outra ali. A editora ficou espantada e com toda certeza decepcionada. Mas não me arrependo e acho que fiz certo. Pois um dos aspectos centrais da revisão, seja de original ou de prova, a meu ver, é a necessidade de que a gente se desprenda da gente mesma, consiga ter um pouco de objetividade sem o reflexo condicionado de "reescrever" como a gente teria escrito em primeiro lugar, se fosse o autor. Mas não somos o autor, e o bonito - e, a meu ver, o desejável - é ler, conhecer e respeitar maneiras de escrever que, justamente, não são a nossa, oras. Assim, quando se diz que se deve respeitar o texto, o que entendo é mais ou menos isso: ter um pouco de humildade e abertura em relação ao outro. (Continua aqui)


atualização: em 2015, vim a descobrir que o "renato" era, na verdade, "antero" (uma peça anagramática que minha memória me pregou) - ninguém menos que o antero greco, que se tornou um superjornalista.