27/12/2012

cognatos, falsos e verdadeiros

Volta e meia, ouço dizerem "falsos cognatos" para designar palavras de grafias semelhantes em línguas diferentes, como, por exemplo, eventual em inglês e "eventual" em português, actual/"atual", relevance/"relevância" e assim por diante.

Sinceramente fico um pouco aflita. Um cognato quer dizer uma palavra com a mesma origem de outra, seja na mesma língua, seja em duas ou mais línguas diferentes - só isso. Em eventually e "eventualmente", por exemplo, temos um caso de verdadeiro, não de falso cognato. Quero dizer, são cognatos mesmo! Se o sentido de  eventually hoje em dia é muito diferente do sentido de "eventualmente" em português, não é porque não tenham a mesma origem etimológica; é porque a evolução semântica dos termos - que, repito, são realmente cognatos - foi diferente, resultando em sentidos diferentes.

O que me parece que acontece, é que às vezes as pessoas dizem "falso cognato" querendo dizer "falso amigo". Ou seja, uma palavra estrangeira para a qual o tradutor acha que há uma palavra tão parecidinha em sua língua que até fica fácil - mas acontece que o sentido de uma é diferente do da outra, e por isso acaba sendo quase uma armadilha: a tal palavrinha tão fácil acaba se mostrando uma amiga da onça, uma falsa amiga.

Então, caros iniciantes e principiantes, quando forem se referir a essas falsas amigas, não digam que são falsas cognatas: boa parte dessas amiguinhas da onça são é cognatos bem verdadeiros, cognatos da gema!

Este é o ponto número 1.

O ponto número 2 é que também existem palavras que são bem hipócritas em sua aparente amizade para com o tradutor, mas não porque eram filhas da mesma mãe em priscas eras e depois cada qual seguiu seu caminho e nunca mais se viram. Simplesmente podem não ser cognatas, isto é, nem ter o mesmo tataravô em comum: por exemplo, aceitar em espanhol e "aceitar" em português - só têm uma grafia enganadoramente parecida, mas não têm e jamais tiveram qualquer etimologia em comum. São falsas amigas, sim, e são falsas cognatas também - quer dizer, podem fazer a gente pensar que, séculos ou milênios atrás, aceitar e "aceitar" eram irmãs, só que nunca foram: o azeite de origem fenícia chegou ao espanhol através do árabe, enquanto o aceite em português vem de um singelo acceptare latino. Só neste caso é que poderíamos dizer que são "falsas cognatas", ou seja, apesar da semelhança na grafia, não têm parentesco nenhum.

Mas em boa parte dos casos, repito, os falsos amigos que vêm visitar o tradutor são mesmo cognatos, e  chamá-los de "falsos cognatos" muitas vezes acaba sendo despropositado.

21/12/2012

minha carreira de revisora IV

Saindo da Abril, não sei bem o que fiz de imediato. Morava com meus pais, morria de tédio na faculdade, lia bastante, cometia meus poemas juvenis numa linda Hermes Baby que eu tinha (e ainda tenho), fazia oficina de teatro no TUCA, decerto procurava algum emprego. Gostava muito dos livros da Perspectiva, com Auerbach, Jakobson, os irmãos Campos, Octavio Paz, essas coisas. Peguei o endereço da editora na lista telefônica - ficava na Brigadeiro Luís Antônio -, fui lá, me apresentei e pedi emprego. Isso foi em 1972.

Na Perspectiva não tinha vaga, mas na Polígono, que era o braço de publicações técnicas da editora, tinha. Bom, do alto de meus dezessete anos e de minha vasta experiência de revisora que mal somava três meses, livro técnico não me assustava. Fiz o teste, passei, comecei.

Já adianto que tampouco na Perspectiva esquentei assento. Fiquei uns cinco meses, talvez. Mas de lá só guardo lembranças maravilhosas e saí apenas porque meu bicho-carpinteiro de estimação não me dava paz.

Bom, na Perspectiva era um barato. Havia uma sala só para o editorial da Perspectiva e da Polígono. Razoavelmente ampla, com janelões dando de frente para a rua, bem iluminada, uma zona de livros, estantes e papéis. Éramos em cinco, dá pra acreditar? A Mary (Amazonas Leite de Barros), que era a chefe, a Alice, uma nissei que era assistente editorial, o Renato, um outro rapaz e eu. Mary e Alice faziam o copidesque e a preparação, e nós as revisões.

Na primeira semana ou quinzena, só bati prova. Eram tipográficas, e a gráfica ficava na porta ao lado, com apenas duas pessoas: o próprio gráfico e um ajudante, um rapaz novinho, com uma enorme cabeleira arrepiada, de fala mansa e sotaque nortista bem carregado, chamado Plínio, que anos depois se tornou o diretor-presidente da EDUSP (Plínio Martins Filho). Um doce de pessoa.

Uma vez já pus essa foto no Facebook. Foi a única que restou daquela época. Tinha uma também com o Plínio e o chefe dele, mas não sei por onde anda.


Em seguida, comecei com as primeiras provas: trabalhava em dupla com o Renato, mas o sistema era bem diferente da Abril, quase caseiro. Um dia estava lá marcando e ele lendo, falei "Peraí, repete". Ele repetiu. "Não, deve estar faltando alguma coisa", disse eu. "Não faz sentido." Era uma tradução de um livro alemão de engenharia. Nem ele nem eu entendíamos alemão. Pegamos o original e toca a procurar a passagem. Avisei a Mary: "Olha, não pode ser isso. Não sei o que é, mas isso aqui não tem como". Bom, achamos a tal passagem, alguém que entendia alemão (não ali na sala, talvez o Guinsburg ou outro alguém) conferiu, estava com problema mesmo, corrigiram.

O episódio elevou minha moral lá dentro, a Mary ficou contente e foi assim que passei da Polígono para a Perspectiva. Quer dizer, a sala era a mesma, as pessoas eram as mesmas, mas a distribuição das tarefas era diferente. E mais, tchantchan: de revisão de prova passei para revisão de original (a gente diz "original" ou "manuscrito", para diferenciar de "prova", mas era tradução em laudas datilografadas). Ganhei uma mesa só para mim e aí passei a aprender a acompanhar a tradução pelo original e a copidescar o texto. A Mary me passou um livro, deu as diretrizes gerais e foi mais a Alice que me ensinou.

Sempre tive mão muito leve. Olho atento, sim, mas a mão... Corrigia apenas erros gramaticais, conferia se o sentido batia com o do original, completava eventuais omissões, mas no texto propriamente dito não mexia quase nada. Se alguma coisa parecia meio esquisita, consultava a Alice e eventualmente a Mary, e assim ia aprendendo.

Diga-se de passagem que é por isso que não entendo bem um certo frenesi atual de mexerem a torto e a direito em textos corretos e vasados satisfatoriamente. E aqui me lembrei de um episódio relativamente recente, de uns quatro anos atrás: eu andava meio enfastiada de traduzir e uma editora me passou um texto para preparar. Não era tradução, o original era em português mesmo: um artigo de umas quarenta páginas, com uma entrevista, muito leve, interessante, gostoso de ler. Fiz o que achei que tinha de fazer. Ou seja, num texto bom, quase nada - só uma coisinha aqui, outra ali. A editora ficou espantada e com toda certeza decepcionada. Mas não me arrependo e acho que fiz certo. Pois um dos aspectos centrais da revisão, seja de original ou de prova, a meu ver, é a necessidade de que a gente se desprenda da gente mesma, consiga ter um pouco de objetividade sem o reflexo condicionado de "reescrever" como a gente teria escrito em primeiro lugar, se fosse o autor. Mas não somos o autor, e o bonito - e, a meu ver, o desejável - é ler, conhecer e respeitar maneiras de escrever que, justamente, não são a nossa, oras. Assim, quando se diz que se deve respeitar o texto, o que entendo é mais ou menos isso: ter um pouco de humildade e abertura em relação ao outro. (Continua aqui)


atualização: em 2015, vim a descobrir que o "renato" era, na verdade, "antero" (uma peça anagramática que minha memória me pregou) - ninguém menos que o antero greco, que se tornou um superjornalista.



20/12/2012

minha carreira de revisora III

De meus trinta dias como trainee na Abril, ficou memória funda de três coisas. Sou ruim para guardar nomes: minha memória é mais fotográfica e meu processador mental parece que gosta de imagens e visualizações. O raciocínio sobre a coisa, as emoções associadas àquilo ficam em outros departamentos da minha cabeça, aos quais nem sempre tenho muito acesso. Então às vezes falo das imagens e só aí consigo depreender algum sentido. Desculpem-me se divagar muito.

Bom, são três conjuntos de imagens.

I.
A primeira delas é uma baia onde se sentava um rapaz - coisa rara, lembro o nome dele, Jétero - que parecia imensamente atraente, um beau-laid à la Jean-Paul Belmondo da Marginal do Tietê, com cabelo louro escuro meio rebelde, aquela desenvoltura cheia de vitalidade, de cara larga, nariz achatado e lábio leporino, que dirigia um Opala de capota arriada abraçado à namorada e mais umas três mocinhas alegres e sapecas dentro do carro. Ele mantinha na mesa um ventiladorzinho pequeno, daqueles portáteis, ligado bem diante do rosto. Eu era tímida, sempre fui, até meus 45, 50 anos - apesar de metida a independente, era quieta e encabulada. Então passava pela baia do Jétero e mal olhava. Um dia, não sei por quê, diminuí o passo. Ele me olhou com ar meio interrogativo, tipo "o que foi"; quase morri de vergonha e, para disfarçar, olhei o ventilador e disse: "Pra ter sensação de liberdade, né?". Nunca vi um olhar mudar tão rápido: era como se eu tivesse chegado ao ponto mais exato, ao centro mesmo do que ele sentia e nunca tinha formulado em palavras.

Se aquela franca admiração no olhar dele me envaideceu muito, o que me marcou nessa imagem, se eu for racionalizar, é bem isso: um ventiladorzinho ligado na cara para ter sensação de liberdade. Edificante de uma maneira levemente patética, suponho.

II.
A segunda sequência de imagens é tristíssima e ainda hoje, ao me lembrar dela, fico um pouco deprimida. Como disse, nosso chefe sabia lidar bem com a gente e todo mundo gostava dele. Um dia, ele convidou todos nós para sua festa de aniversário, à noite, em seu apartamento. Estava fazendo cinquenta anos e alguma coisa. Novata, também fui convidada. Peguei o endereço, e à noitinha tomei um ônibus e fui até o Largo do Paissandu, onde ele morava. Quem conhece São Paulo vai entender do que estou falando. Mesmo quarenta anos atrás, o Paissandu era uma decadência só, provavelmente mais do que hoje, com tanto esforço de revitalização do centro urbano mais antigo.

Subi até seu apartamento, um aposento só, escuro e triste. Poupo a descrição do lugar e de meus sentimentos, até em respeito a ele: em todo caso, a sensação física era de coração apertadinho. Ele muito alegre, muito enternecido, muito feliz mesmo. E aquela moçada em volta, rindo, tocando violão, cantando: uma moçada que decerto não ficaria no emprego nem um ano, incessantemente substituída por outra moçada alegre e descompromissada nas vagas de revisor na Abril. Aquele senhor simples, culto e gentil era meu chefe. Olhando para trás, acho que foi talvez por isso que saí da editora ao término de meus trinta dias de experiência.

III.
A terceira sequência de imagens se refere àquela figura sinistra que mencionei no post anterior, aqui. Como disse, nunca soube sua função. Também nunca falei com ele e nunca cheguei muito perto. Grandalhão, sempre calado, taciturno, com ar quase bravo, barba escura cerrada e óculos grossos. Pouco simpática, a visão.

Eu já tinha notado um esporádico vai-e-vem na mesa dele, e um dia - já contei essa história em outro lugar - aparece um rapaz magrelo, tímido, curvado, com um paletó bege surrado, que lhe estende com ar esquivo e sorrateiro um envelope gordo, tipo um pacote embrulhado. Perguntei a meu par o que era aquilo. Me respondeu em tom de segredo: "É que ele é tradutor e o pessoal vem entregar as traduções que faz para ele".

Preciso comentar?
(continua aqui)

19/12/2012

minha carreira de revisora II

Então lá comecei eu na Abril, na revisão. A sala, na verdade, era um corredor largo que fazia um U com a sala grande onde cuidavam dos cronogramas e fluxogramas das revistas e terminava numa parede. Éramos ali em catorze, divididos em sete duplas, cada qual ocupando uma "baia". Havia cinco baias de um lado e duas do outro. A baia consistia num espaço com divisórias perpendiculares à parede, com uma mesa de bom tamanho e duas cadeiras, uma na frente da outra. Na parede onde terminava aquela espécie de corredor ficava o ponto mais frequentado, o lugar onde tinha água e cafezinho, claro. Na outra ponta, no U por onde a gente entrava naquele huis clos meio claustrofóbico, havia uma mesa solitária, sem divisórias, solta ali, onde se sentava uma figura francamente sinistra. Nunca soube qual era sua função.

Eu já sabia fazer marcação e bater prova, pois tinha aprendido na Edgard Blücher, mas na Abril aprendi a trabalhar em dupla. Um ia lendo o texto, o outro ia acompanhando na prova e fazendo a marcação. Foi quando aprendi a ler batendo a pontuação com lápis, para o colega saber quando era ponto, vírgula, dois pontos. Um código muito simples e eficiente.

Agora imaginem catorze pessoas num corredor, sem janelas, sem portas, separadas aos pares por divisórias de meia altura, sete delas lendo em voz não alta, mas audível para o colega, e batendo pontuação com lápis. Realmente aprende-se a trabalhar em conjunto! Então a gente tinha de modular o tom de voz, conseguir nitidez na elocução, mas falando baixo, para não perturbar os outros, e também porque - já tentaram ler cinco ou seis horas em voz alta, mesmo fazendo rodízio com o colega e parando de vez em quando para tomar um cafezinho? Quer dizer, tem de poupar a voz, senão não há voz ou garganta que aguente.

Algumas vezes por dia entrava um boy com montes de pastas enormes com as provas dentro, recolhia o que a gente já tinha feito e distribuía o novo material. Era sempre uma mistura, Cláudia, revistas de jardinagem, de carros, de saúde, todas com cronograma apertado e tendo de fechar rapidinho. Foi na Abril que aprendi a ter rapidez e eficiência na execução de tarefas, e ao mesmo tempo a ser muito metódica. Pois teu par vai lendo, você vai acompanhando, tem de pegar os erros, as letras faltantes, as letras trocadas, pontuação idem, as manchas, o alinhamento, e vai marcando as correções necessárias, de preferência sem interromper a leitura do outro - no máximo você pede para ir um pouco mais devagar. Então a pessoa precisa ficar esperta o tempo todo e ser bem ágil.

Apesar do ambiente potencialmente estressante, o chefe, um senhor miúdo, baixo, magro, mulato, na faixa dos 50 anos, sempre discreto, mas sorridente, conseguia manter o clima descontraído. Claro que todo mundo era jovem, moçada mesmo, no máximo com uns 23, 25 anos. Nosso chefe tinha o maior traquejo em lidar com a turma, até porque a rotatividade era bastante alta. (Revisão não era propriamente sonho de carreira de ninguém, pagavam pouco, talvez uns dois ou três salários mínimos; então era emprego de estudante mesmo.) A cobrança era intensa e constante, mas invisível, digamos assim.

Meu par era um rapaz alto, meio corpulento, que tinha de se espremer para caber no espaço entre a cadeira e a mesa, estudante de engenharia, nada dado a intelectualismos, muito risonho e afável. A gente chegava de manhã, dizia oi, sentava e começava. Sem história, sem conversa, só aquele zunzum/ toctoc da leitura e do lápis. A cada 40 minutos, mais ou menos, a gente trocava quem lia, quem marcava. Um dia, eis que o chefe senta na minha frente, e começa a ler para mim. Foi um espanto: a voz do homem era um mel, uma cantiga, uma doçura. Daria para aguentar aquilo por horas seguidas (porque outra razão pela qual é preciso fazer o rodízio de quem lê e quem marca é que, a partir de certa altura, aquela voz em cantilena começa a te irritar ou você começa a ficar distraído - então tem de parar e trocar). Acho que ficou uma hora, uma hora e meia ali comigo, trocamos uma ou duas vezes, deve ter achado que estava tudo ok, pois não comentou nem me corrigiu em nada, e foi continuar seus giros pelo setor. Fiquei quase estourando de orgulho e satisfação por ele ter se sentado ali na minha baia, e passei três dias me sentindo nos céus. Incrível isso, não?

Quanto ao trabalho de revisão em si, não tinha nada demais. Sendo só primeira prova, tinha muito mais erro do que numa segunda, claro, e o grau de concentração tinha de se manter constante. Mas era este o serviço; a rotina era simples e a gente levava numa boa. Já era editoração eletrônica, e não linotipo, e as provas vinham na montagem da folha dupla da revista, coladinhas na cartolina, já na diagramação final. Não sei quem e onde batiam a segunda prova. Não éramos nós. (Continua aqui)


piiiiii II


Vou contar um segredo, mas fica só entre você e eu, combinado?

Pode parecer que não, mas acontece demais. E o teste que você tanto quer fazer numa editora é de tradução, não de português, nunca se esqueça disso.
O português, dá-se de barato que você sabe.


piiiiii I

Este piii aí em cima é o som de um apito de alerta aos queridos aspirantes e iniciantes em tradução.

Imaginemos umas frases quaisquer. Por exemplo:
Tínhamos marcado encontro às dez da manhã. Beto chegou às dez e meia: tinha se atrasado por causa de um cliente que precisou atender de última hora. Não reclamei: entendi, claro, pois afinal Beto vivia mesmo se atrasando. Éramos colegas de escola fazia uns cinco anos e todos os sábados íamos tomar um sorvete na esquina. Então apanhei a bolsa, pegamos o elevador e fomos até a sorveteria do Seu Nino.
Compare-se:
Nós tínhamos marcado encontro às dez da manhã. Beto chegou às dez e meia: ele tinha se atrasado por causa de um cliente que ele precisou atender de última hora. Eu não reclamei: eu entendi, claro, pois afinal Beto vivia mesmo se atrasando. Nós éramos colegas de escola fazia uns cinco anos e todos os sábados nós íamos tomar um sorvete na esquina. Então eu apanhei a bolsa, nós pegamos o elevador e fomos até a sorveteria do Seu Nino.
Isso sem dizer:
Nós marcáramos encontro às dez da manhã. Beto chegou às dez e meia: ele se atrasara por causa de um cliente que ele precisara atender de última hora. Eu não reclamei: eu entendi, claro, pois afinal Beto vivia mesmo se atrasando. Nós éramos colegas de escola fazia uns cinco anos e todos os sábados nós tomaríamos um sorvete na esquina. Então eu apanhei a bolsa, nós pegamos o elevador e fomos até a sorveteria do Seu Nino.

Amiguinhos: lembrem que os verbos em português são flexionados e basta ver a conjugação para saber quem é o sujeito dele. Em inglês, não: num verbo regular, entre as seis pessoas apenas a a terceira do singular é que muda (ganha um s ou, dependendo da terminação do verbo, um es). E isso no presente, porque no passado ou com os auxiliares should, would, could, must, might etc. fica tudo igual. E aí é por isso que o inglês tem de usar e abusar dos pronomes retos para indicar quem é o sujeito.

Então vocês não vão traduzir todos os I, you, he/she, we e they que aparecerem num texto, né? Se a rigor não é errado-errado, fica pelo menos bem feiinho, digamos assim, por causa de uma coisa chamada redundância, que só atrapalha a fluência e a leitura.

18/12/2012

minha carreira de revisora I

Meu primeiro emprego na vida, embora informal, foi no Equipe, em São Paulo, onde eu estava fazendo cursinho, um semi, para prestar vestibular. Isso foi em 1971: eu tinha 16 anos, escrevia bem, e o Gilson, professor de redação do cursinho, me convidou a me juntar com seus assistentes que liam, corrigiam e atribuíam conceito às redações da moçada.

Foi lá que então comecei a trabalhar com o Carlinhos e o Zé Antônio - José Antônio Arantes, que veio a se tornar sensível e exímio tradutor. Quando fiz 17 anos, em novembro, os dois me deram de aniversário Memórias sentimentais de João Miramar Serafim Ponte-Grande do Oswald de Andrade, que a Civilização tinha acabado de lançar em suas Obras completas, e que guardo com o maior carinho até hoje.

O Zé trabalhava de revisor na Edgard Blücher e resolveu sair de lá, não lembro por qual razão. Então me deu o toque que ia abrir a vaga, e lá fui eu bater à porta da editora. Me apresentei, devo ter feito algum testezinho que não recordo e fui contratada a título de experiência. A Blücher é uma editora técnica, e eu tinha feito clássico - até tinha um inglês e um francês bem razoaveizinhos e algumas tintas de latim, mas nada de matemática, física, química ou biologia, a não ser o que se aprendia no ginasial. Imaginem! Mas era para revisão da segunda prova e aí o importante eram o português, a atenção e a capacidade de concentração.

Meu chefe era muito legal. Não lembro o nome dele, mas lembro sua figura: alto, magro, um pouco encurvado, com uns 40 anos, falava baixo e era calmo e atencioso. Andava sempre com um avental azul manchado de tinta e graxa, pois era da gráfica e ele que nos trazia as provas da linotipia e levava as provas corrigidas. Havia mais três na revisão, os três rapazes. Fiquei encantada em aprender coisas do ofício - basicamente as marcações, que não conhecia - e decorar palavras às quais eu devia prestar a maior atenção, que era onde mais passavam as gralhas: nunca me esqueci da biorrefringência (naquela época já era com dois erres e tudo junto, e a atenção que a gente tinha de prestar era no "n", pois parece que os gráficos viviam imprimindo "biorrefrigência") e do espácio-temporal (e jamais espaço-temporal nem espacio-temporal). Outras me fugiram da memória. Se eu pegasse alguma biorrefrigência e pedisse um "n", meu período de experiência estaria no papo, me diziam os colegas.

Fui bem, gostava, era sossegado, o lugar era legal: a editora ficava na Peixoto Gomide; eu morava em Santa Cecília e ia de ônibus até a Paulista, descia no ponto do Parque Trianon e atravessava aquele verdor lindo de manhã, admirando as teiazinhas de aranha que se estendiam entre as folhas das árvores e cintilavam de orvalho. Era um encanto para uma adolescente tão urbana feito eu. Fiquei uns dois meses na Edgard Blücher e então saí, por nenhuma razão em especial, talvez por ter em mim uma espécie de bicho-carpinteiro que não me deixava parar por muito tempo em lugar nenhum (mas só depois vim a constatar essa minha tendência) ou por não me sentir especialmente motivada em revisar livros cujo conteúdo transcendia meu entendimento e que eu não tinha a menor esperança de algum dia vir a apreciar, como merecem ser apreciados todos os livros que a gente lê.

Depois fiquei sabendo que a Abril, que na época era o máximo, ia fazer um teste de revisão. Periodicamente (acho que a cada seis meses) ela anunciava que ia fazer um teste coletivo a tal dia, a tal hora, choviam uns cem candidatos, todos se sentavam numa sala, em cadeiras de escola, e recebiam aquela folha corrida imensa de comprida, a prova tipográfica, para revisar. Fui lá, sentei, fiz o teste, passei com 92% ou 94% de acerto, o que, embora tenha me decepcionado um pouco, causou um pequeno cataclismo no departamento editorial. A coordenadora mandou me chamar e disse que a média geral costumava ser de 45% de acerto e que contratavam quem alcançasse 60%, e que nunca tinha visto uma coisa daquelas. No mesmo dia me encaminhou para uma psicóloga da empresa, que fez uma entrevista comigo e me mandou escrever um texto por livre associação, ali na frente dela. Escrevi umas três ou quatro páginas com um ar meio frenético, pois estava achando aquilo divertido e resolvi dar uma teatralizada meio bretoniana na coisa.

Parece que ficaram um pouco impressionados e me propuseram entrar direto para a redação da Veja (que na época era bem diferente do que é hoje). Não quis. Finquei pé e quis ficar na revisão. A senhora de lá, a tal coordenadora, até ficou meio chateada e fez cara feia, e, para não parecer muito grosseira, falei que era por causa do horário da faculdade (nesse meio tempo, eu tinha entrado na USP, em ciências sociais, mas achei muito chato, pois mais da metade dos professores tinha se exilado, aquilo parecia um cemitério, e me transferi para a filosofia, igualmente chata, mas isso é outra história). Como revisor fazia turno direto de cinco ou seis horas, eu podia trabalhar de manhã e fazer a faculdade de tarde, enquanto na redação era período integral. A senhora ainda insistiu, dizendo que o salário era muito melhor, que na redação era folgado, era só eu deixar um casaco ou um livro na cadeira ou na mesa, que todo mundo fazia isso, eu podia tirar a tarde e ninguém ia dizer nada. Como, além de bicho-carpinteiro, tenho algumas características de mula, aí sim que empaquei e disse, revisão ou nada.

Foi assim que entrei como trainee na Abril. Lá foi sensacional como experiência, embora eu tenha cumprido apenas meus trinta dias e depois puxado o carro. (Continua aqui)

14/12/2012

tenho um projeto de tradução

Um iniciante, que nunca fez tradução para nenhuma editora, me pergunta como fazer para apresentar a alguma editora um projeto de tradução de um determinado autor inédito no Brasil.

Minha resposta, um pouco adaptada:
É muito difícil apresentar um projeto, ainda mais não conhecendo bem a casa. Editora é empresa. Tem sua linha de produtos, tem seu fluxograma, suas planilhas, seus nichos de mercado, seus públicos-alvo e assim por diante. Se for autor que não está em domínio público, aí sim me parece ainda mais difícil que alguma editora se interesse. Simplesmente não é assim que elas funcionam.
Ponha-se no lugar da empresa: alguém bate na porta de sua casa se oferecendo para algum serviço. Como você esperaria ser tratado? Como se tivesse alguma obrigação de atender à pessoa? Não, né? Ou se chega um vendedor à sua casa oferecendo tal e tal produto. Não é você que tem de se interessar pelos produtos dele; é ele que tem de ver suas necessidades, seus gostos, seus interesses para ter um mínimo de sucesso em suas vendas, não é mesmo? Então, mutatis mutandis, é assim que eu vejo um pouco a coisa. E se pensar ainda mais francamente, você é um - não digo empregado, funcionário, mas é alguém que quer trabalhar para uma empresa. Você vai chegar como? Claro que existem relações de poder. Este é o dado que tem de ser tomado como o elemento fundamental da equação.
Em todo caso, se for obra em domínio público, sei que uma ou outra editora às vezes topa alguma sugestão. De todo modo, se há algumas editoras que te atraem, entre nos sites delas, veja a linha em que trabalham, vá se enfronhando na área. Meu conselho, que tento dizer polidamente com muita frequência e vou dizer bastante claramente agora: não são as editoras que têm de se interessar por você, é você que tem de se interessar por elas. É o básico de qualquer relações públicas, de qualquer contato minimamente cortês e formal. Aí talvez você consiga maior receptividade.



13/12/2012

identificação de um livro

Caro iniciante: digamos que você já traduziu um ou mais livros, fica todo pimpante, recebe seu(s) exemplar(es) - sim, é praxe que a editora lhe envie pelo menos um exemplar do livro que você traduziu -, abre lá e: cadê teu nome?

Acontece, caro iniciante, às vezes acontece, por lapso ou por má-fé. É raro: é raro que uma editora cometa esse lapso involuntário; ainda mais raras são as editoras que fazem isso de propósito, de má-fé. Nos casos de lapso involuntário, as editoras providenciam a correção na hora ou numa segunda edição. Nos casos de omissão deliberada, é um bom indicador da política da empresa, e aí a questão que se coloca é: te interessa trabalhar com gente assim?

Depois volto ao tema. Agora quero começar por algo bem mais simples, a identificação de um livro. Costumo dizer que o livro tem dois documentos de identidade, tal como nós temos nosso RG e nosso CPF. Todo livro tem seu ISBN e sua ficha CIP.

Para se informar sobre o que é o ISBN e como funciona, consulte aqui. Em Não Gosto de Plágio também há algumas explicações bem simples e didáticas, por exemplo aqui e a tag geral aqui, com vários exemplos cômicos e ilustrativos.

Como a solicitação do ISBN é necessariamente anterior à edição do livro, pode haver discrepâncias entre o cadastro do livro na agência do ISBN e a ficha CIP. Neste caso, vale a ficha CIP. Naturalmente, seria muito desejável que, em caso de alteração de dados da obra durante o processo de edição, a editora comunicasse o fato à agência do ISBN, solicitando as devidas alterações. Mas isso praticamente nunca ocorre. Quais os desdobramentos e consequências disso, será tema de outro post.

Por ora, comece a se enfronhar no que é o ISBN. Além de interessante, vai te ajudar a começar a entender como funciona a edição de um livro.


Tudo Sobre o ISBN



11/12/2012

L&PM

Hoje conversei com Caroline Chang, editora da L&PM, a quem agradeço muito a atenção e a gentileza. Perguntei a ela sobre os contatos de iniciantes interessados em tradução: se a editora recebe muitos e-mails, se são lidos, se há alguma triagem, se são respondidos, o que a editora espera de um candidato etc. São vários pontos:

  • Sim, a editora recebe muitos e-mails de gente se oferecendo para fazer tradução
  • Os e-mails chegam a diversos endereços de e-mail, desde o que consta no site - info@lpm.com.br - a outros variados
  • Todos são encaminhados para a editoria
  • A editoria lê todos eles
  • A alguns de fato não se dá seguimento. São os que não trazem nenhum tipo de informação objetiva, não anexam currículo, não apresentam nenhuma referência sobre as traduções feitas, e as mensagens são do gênero "Morei nos Estados Unidos algum tempo e queria começar a traduzir" ou "Terminei o curso de Letras e agora quero entrar no mercado de tradução literária", e só
  • Alguns trazem apenas um currículo Lattes sem menção a qualquer tradução. Nesses casos de formação mais especializada e se porventura a editora tiver algumas obras naquela especialidade, pede-se ao candidato que envie mais informações
  • Muitas vezes, naquele momento não há interesse ou necessidade da editora em cadastrar novos colaboradores. Tirando os casos que não tiveram seguimento pelas razões acima expostas, a editoria acusa o recebimento do e-mail, respondendo que futuramente poderá voltar a entrar em contato
  • Em outras vezes, se o recebimento de e-mails com currículo e lista de obras traduzidas coincide com a necessidade ou interesse da editora em novos colaboradores, apresenta-se ao candidato o tipo de obra que seria e pede-se a ele que faça um teste. Caso seja aprovado, contrata-se a tradução da obra em questão e eventualmente de outras na sequência
  • Não se atende nem se pedem testes a todo e qualquer candidato, pois é um processo demorado, que demanda uma estrutura própria de atendimento e acompanhamento para algo de que a editora muitas vezes nem está precisando 
O cerne da explicação de Caroline Chang foi muito claro: sem experiência não dá. A editora não opera como uma escola de tradutores, não forma profissionais: ela contrata profissionais. Uma de suas sugestões foi que os iniciantes comecem por textos mais simples, obras de divulgação, e depois, já com mais prática, passem para obras literárias.

É isso aí, gente.


10/12/2012

então como faz?

Bom, então você quer começar a traduzir livros para uma editora.

Tem um bom domínio do português, um bom domínio de outra(s) língua(s), gosta de ler, tem facilidade para escrever, dispõe de uma bagagenzinha de cultura geral, tem formação específica em alguma área do conhecimento, talvez disponha de alguma experiência de tradução como diletante, tem boa capacidade de concentração, um espírito meio detalhista e bastante disposição.

Decerto você vai mandar e-mail para várias editoras, oferecendo seus préstimos, seu enorme talento, sua plena disposição, toda a sua inteligência e sua nenhuma ou parca experiência. Está certo, é isso mesmo o que tem de fazer. Vai adiantar? Provavelmente ou quase certamente não. Dou dez ou vinte pra um que nem vão te responder.

Mas por quê? você brada em exasperação e se põe a caraminholar:
  • É porque os céus se uniram contra você? 
  • Porque é uma panelinha fechada onde só se entra com padrinho ou pistolão? 
  • Porque você é ótimo e são os outros que não percebem? 

Respostas:
  • Não, não se preocupe, os céus não se deram ao trabalho de se unir para contrariar você. 
  • Se é uma panelinha tão fechada, deixa esses esnobes pra lá, oras!
  • Então pior pra eles, não é mesmo?

Não tenho respostas prontas nem sequer um quadro muito claro na cabeça. Até me comprometo a consultar algumas editoras e perguntar o que fazem com os e-mails, como costumam recrutar novos colaboradores etc., para ter elementos mais concretos, e aí venho contar.

Por ora, o que eu sei, meio desconexo e variável, é o seguinte:
  • Muitas editoras têm um quadro relativamente fixo de colaboradores constantes e um bom tanto de colaboradores mais esporádicos - então apenas muito raramente vão precisar de novos colaboradores
  • Por outro lado, várias editoras tiveram um grande aumento em sua produção editorial. Estas são as que precisam ou andaram precisando em data recente de novos colaboradores. Como não existe um mercado propriamente dito, um mercado sedimentado, não havia e não sei se já há métodos de recrutamento minimamente consolidados. Aí é o tipo de caso de sair correndo atrás de colaborador, ficar anunciando na Catho ou nos e-groups - imaginem a situação em que essas editoras se colocam! Com a enxurradinha de interessados e sem uma estrutura funcional de seleção, vira um melê
  • Há as que contratam meio à balda, sei lá bem por quais critérios (provavelmente apenas por CV), descobrem que a tradução ficou horrível, pensam que é assim mesmo e que tradução em geral sempre vai ser ruim, jogam o preço da lauda lá embaixo e continuam com coisas horríveis, tentando salvar na preparação ou até se arriscando a publicar aquelas coisas medonhas assim mesmo
  • Ou também podem ficar pulando de tradutor em tradutor, para ver se se acertam com algum, e não conseguem formar um quadro estável. Algumas desistem de tanto atropelo e contratam agências - agências! - para fazer esse trabalho de recrutamento, seleção, contratação, que então entregam a tradução já preparada e pronta para rodar. As editoras apenas transferem seus problemas, digamos assim. Basta ver o episódio recente da Editora Leya e uma agência de tradução, na publicação do terceiro ou quinto volume de uma dessas sagas populares - sobrou pra todo mundo.

Eu poderia contar mil casos. Mas o que quero dizer é que editoras bem estruturadas costumam estar com seus quadros completos. Editoras em expansão recrutam novos colaboradores, mas nem sempre sabem como fazer. De qualquer forma, não é algo contínuo, é meio por surtos e saltos. Há também editoras passando por períodos bastante difíceis, com o acirramento da concorrência nos últimos anos, estão cortando custos e diminuindo seu ritmo de publicação.

Se você se interessa em acompanhar as notícias do mundo editorial, minha sugestão é assinar o Publishnews, aqui, e aí não preciso ficar falando tanta coisa desconjuntada. 

Depois continuo em outro post o que eu tentaria fazer se tivesse de começar.

formação

E qual é sua formação? Para onde se dirigem seus gostos? Além de sua formação de base, sua bagagem de cultura geral dá para o gasto?

Não quero dizer que você precisa ser formado em filosofia para traduzir obras de filosofia, mas, que precisa ter alguma base, sem dúvida precisa. O mesmo em relação a obras de história, antropologia, sociologia, ciência política, pensamento jurídico, economia política, teoria literária, artes e assim por diante. Todas essas áreas das humanidades exigem domínio específico, e áreas como psicanálise e linguística são ainda mais delicadas.

Da mesma forma, não creio que você precise ter formação em letras para traduzir literatura. Não me refiro à chamada literatura de entretenimento, nem à literatura dita cor de rosa ou chicklit. Penso em obras com um pouco mais de densidade literária, digamos assim. Retomando, você não precisa ter graduação em letras, mas certamente precisa ter noções de estilo, retórica, figuras de linguagem, de escolas literárias e história da literatura - e, ça va sans dire, ter lido pelo menos as principais obras do cânone.

Se você tem realmente o gosto de traduzir literatura, talvez até ande traduzindo coisas por iniciativa própria, por impulso, por curiosidade, experimentando a mão, acompanhando publicações impressas e digitais com literatura traduzida ou, quem sabe, mantém seu próprio blog com suas traduções. Da mesma forma, imagino que, se seu gosto é mais teórico, você pode estar traduzindo textos de autores que você admira e que não estão disponíveis em português, e que aí você divulga entre seus colegas de interesses intelectuais.

Não sei no que você trabalha - ou se trabalha -, mas, tendo gostos assim, imagino que, em sua época de faculdade, você era rato de biblioteca, visitava a editora da universidade, caso houvesse, conhecia as publicações de seu departamento e departamentos afins, e talvez até tenha contribuído, fazendo revisão, diagramando, oferecendo-se para alguma coisa útil.

Pois essa "formação informal" é o que já vem pavimentando seu caminho, é por onde você já está seguindo - tem a vocação, tem um pouco de prática, tem contatos, já é de certa forma o ambiente por onde você trafega.

Se você não se encaixa em nada do que mencionei acima, o mundo editorial das letras e das humanidades pode parecer meio remoto. Neste blogue, porém, é deste mundo que estou falando.

09/12/2012

na paz

Áurea Akemi Arata comenta:
Acho que você precisa começar a construir seu currículo de algum modo, aos poucos. Sempre tive sorte também, o primeiro livro que traduzi foi em 2002, uma amiga, impossibilitada de traduzir um livro para uma editora, acabou me indicando. Veja bem, naquela época, essa editora já pagava R$ 16,00 por lauda de 2.100 caracteres, peguei o serviço sem ter noção de valor. Era interessante para mim e queria tentar algo novo. Depois descobri que era um preço bem razoável dentro do mercado. Fiquei um ano sem traduzir nada e depois os serviços começaram a pipocar. Foram alguns anos até conseguir a agenda cheia. Atualmente traduzo mais romances que culinária, gosto das duas coisas.
8/12/12, Facebook (Tradutores / Intérpretes)

prazos / traduções em simultâneo

Regiane Winarski conta:
Quando eu comecei a trabalhar com editoras, nunca tinha conversado com um único tradutor que fosse e não sabia como costumavam ser os prazos de trabalho. Pra falar a verdade, só vim a conhecer um bando de tradutores quando entrei aqui [FB]. As editoras de cara começaram me dando prazos longos e eu achava que estava fácil demais, dava conta do serviço com poucas horas de trabalho por dia, e por isso adquiri o hábito de traduzir mais de um livro por vez. Até hoje, praticamente só pego livros com prazos longos e acumulo alguns ao mesmo tempo, e isso vem funcionando muito bem pra mim e vem me rendendo trabalho por períodos bem longos.
7/12/12, Facebook (Tradutores / Intérpretes)

saber o que quer

Fala Débora Landsberg:
Quando comecei, já tinha em mente que tipo de literatura eu queria traduzir. Foi difícil chegar lá? Foi. Mas fui construindo um caminho para isso. Uma das minhas primeiras editoras era dessas mãos-de-vaca, que não respeitam muito seus colaboradores. Eles editavam uma autora muito importante, e depois de traduzir uns livros para eles eu comecei a pedir para que me dessem um dessa autora. Fiz um teste específico para traduzi-la, fui aprovada. Fiz o livro. Na mesma época uma outra editora me procurou para fazer um livro importante (de um autor clássico). Eu tinha mandado o CV para eles um ano antes! Me ligaram do nada e levei um susto, claro. Bom, depois disso engrenei e passei a traduzir o que gosto (salvo raras exceções, como traduzir coisas que eu não leria para editoras que me parecem interessantes). Acho que o importante é saber o que você quer, e pode, fazer. Boa sorte! 
7/12/12, Facebook (Tradutores / Intérpretes)


em 1998

Paulo Henriques Britto, por exemplo, diz que consegue traduzir uma média de 100 páginas por mês, embolsando algo em torno de 1.300 reais (ele complementa a renda aceitando alguns outros trabalhos, como traduções de teses e artigos). Mais rápida, Aulyde desbasta um romance de 300 páginas no mesmo período, podendo faturar em meses gordos cerca de 4.000 reais. Essas baixas remunerações transformaram alguns profissionais talentosos em verdadeiros ativistas por melhores salários. É o caso de Nilson Moulin, tradutor de autores como Italo Calvino e Giorgio Manganelli, premiado pelo governo italiano. "Há muito editor por aí que, além de semi-analfabeto, é pão-duro", acusa. "Eles nos tratam como digitadores de luxo." Moulin teve de reduzir seu ritmo de trabalho por causa de uma tendinite e diz que vai fugir da tradução enquanto o preço das laudas não for corrigido e não houver o reconhecimento legal dos direitos autorais sobre a tradução. As mesmas reivindicações são feitas por Lia Wyler, ex-presidente do Sindicato Nacional dos Tradutores, autora do verbete sobre o Brasil na única enciclopédia de tradução existente no mundo e também de uma grande tese sobre a história da tradução no Brasil. "Há gente que se vê obrigada a traduzir três livros por mês", diz ela. "É um absurdo."
Síndrome de Taffarel, aqui 

sim, acontece(ia) bastante

Do dia para noite, tradutor
Em 1990, eu já havia publicado três livros por duas editoras, conhecia algumas pessoas no meio editorial e percebi que, naquele contexto, as editoras estavam precisando de tradutores, porque as editoras estavam começando a publicar uma quantidade maior de obras estrangeiras. Então, pensei: “Eles sabem que eu escrevo mais ou menos, confiam em mim, não estão encontrando gente, bom, vou ver se pego esse trabalho.” Dei esse chute, e deu certo. Daquele dia, até hoje, não fiquei um dia sem trabalho de tradução.
Rubens Figueiredo, aqui

testes I

Você é iniciante, escreveu aquele e-mailzinho mencionado lá embaixo, teve a sorte de que algum cristão na editora o lesse e até se dispusesse a responder.

Maravilha! O editor (ou o assistente editorial, mais provavelmente) vai dizer: "Ok, li seu e-mail, estamos cadastrando novos tradutores para a editora, segue em anexo um teste..." - e aí ele pode dar prazo ou não, mas suponhamos que dê - "... para ser entregue até quarta-feira que vem". É uma quinta-feira, digamos.

Você dá pulinhos de alegria, abre o anexo e vê que é um arquivo com umas dez ou quinze páginas.

E aí começam as reações possíveis (presenciei variantes de todas elas):
  • Aaaahn? Como assim, teste? Tem que fazer teste???
  • O quêêêêêê? Quiiiiiiiinze páginas? Esse cara tá querendo me explorar!
  • Aposto que ele está repartindo o livro todo em forma de teste, pra juntar tudo depois e ter a tradução de graça
  • Ui, pra quarta-feira? Ih, não vai dar tempo
  • Aaaaaaaaai, e eu que já tinha me programado pro final de semana! 
  • Nossa, que texto difícil! E como é que eu faço agora?
  • Ah, não vou fazer, não. Se esse respondeu, outro vai responder também, e aí vai que não precisa de teste
  • Pô, que chatice, não fazia ideia que era assim
  • Eles vão pagar, né?
  • Eu, hein! E como vou saber se o pessoal lá tem competência para me avaliar?!
  • Ai, que saco
  • Bom, se é pra ralar, vamos lá!
  • Se eu fizer o teste e não vier o livro pr'eu fazer, juro que vou lá e mato ele

Me desculpe, mas, se você teve ou se vê tendo alguma dessas reações, melhor procurar outra coisa para fazer na vida.


testes II

Você é iniciante, escreveu aquele e-mailzinho mencionado lá embaixo, teve a sorte de que algum cristão na editora o lesse e até se dispusesse a responder.

Maravilha! O editor (ou o assistente editorial, mais provavelmente) vai dizer: "Ok, li seu e-mail, estamos cadastrando novos tradutores para a editora, segue em anexo um teste..." - e aí ele pode dar prazo ou não, mas suponhamos que dê - "... para ser entregue até quarta-feira que vem". É uma quinta-feira, digamos.

Você dá pulinhos de alegria, abre o anexo e vê que é um arquivo com umas dez ou quinze páginas.

E aí começam as reações possíveis (presenciei variantes de todas elas):
  • Puxa, que legal! É assim que funciona?
  • Pô, que confiança a do cara de me mandar um teste logo assim de saída
  • Eficiente o pessoal lá, arquivinho todo beleza
  • Será que dou conta?
  • Hmm, hoje é quinta; vou começar agora mesmo
  • Viva!
  • Ssssshhhh, silêncio todo mundo; tô aqui fazendo meu teste
  • Se eu terminar antes do prazo, vou enviar antes mesmo
  • Deixa eu pegar correndo (ou abrir na tela) meus dicionários
  • Ai, tomara que dê certo!
  • Atencioso o cara, gostei; vou responder já para ele, agradecendo
  • Opa, vamos lá, o maior capricho!
  • Mesmo que eu não passe, já vai ser ótimo, que experiência e tanto!

Se você teve ou se vê tendo alguma dessas reações, vá em frente e boa sorte em seu teste!


08/12/2012

digrátis

Às vezes você ouve por aí os discursos mais preconceituosos sobre traduções que você faz porque quer, porque gosta e divulga de graça. Ou vem a maior patrulha se você ousa mencionar traduções a título voluntário ou defender o mais lindo, leve e solto diletantismo.

E você vai se importar com isso? Traduza o que quiser, o quanto quiser e faça com suas traduções o que bem entender.

Acho que há uma grande - abissal, na verdade - diferença entre traduzir graciosamente, como se dizia antigamente, de livre e espontânea vontade, para as finalidades que você quiser, e traduzir a 5,00 ou 10,00 ou 15,00 reais a lauda para uma empresa que certamente, pagando esses valores, só está esfolando teu couro. Uma coisa é generosidade e desprendimento; outra coisa é aviltamento e autodegradação.

prazos

Normalmente, os prazos para uma tradução são bastante folgados e jamais você terá de virar a noite ou o final de semana para manter o programado - a menos, é claro, que você tenha achado o prazo tão folgado, tão folgado, que resolveu tirar um ou dois meses de férias, ir passear na praia, pintar a casa ou pegar outro livro para fazer antes desse, e aí você sai correndo de última hora.

Outra hipótese para você correr com o prazo, por mais folgado que seja, é que você costuma fazer a bobagem de pegar tradução por quaisquer dois mil-réis de mel coado, e aí tem de bordar paninho de prato para fora, vender avon ou natura, dar aula para o pirralho da vizinha que adora pular no teu colo e te puxar o cabelo ou pegar mais vinte traduções ao mesmo tempo, agora a quinhentos réis de mel coado, para "completar" o orçamento. E aí você vai sair por aí dizendo que só de tradução não dá pra viver, que os prazos são sempre pra anteontem e que você tem de se desdobrar em dez para dar conta. E fica sendo aquela que, na editora, tem fama de ter cinco tios, três pais e pelo menos uns sete primos, todos mortos ou vítimas de algum grave acidente de última hora, e por isso você vai atrasar a entrega da tradução por mais uns quinze dias, além das duas outras prorrogações que já te deram. e isso se - e você frisa o se - teu computador não der pau mais uma vez.

Me desculpem, mas não tem essa história de prazo apertado, não. Editora é a primeira a embutir em seus prazos uma boa margem de segurança. O resto é história pra boi dormir.


tradução como "bico"

I.
Você é esforçadinha, fez um curso inteiro de tradução, formou-se e agora vai à luta. Conversa com uma amiga, que te diz: "Ah, tradução? Que coincidência, ando fazendo uns bicos que consegui. Manero, né?"

E aí você fica tiririca porque você não conseguiu nada até agora e sua amiga, que não fez nenhum curso de tradução, não leu nenhum daqueles livros chatésimos de teoria da tradução, não aguentou um monte de alugação em casa - "tradução?!" -, está muito tranquila, na dela, fazendo bico!!

Meu conselho? Desencana. Cuide de sua vida e não se preocupe com a dos outros.

II.
Você gosta de ler, gosta de escrever, aprendeu um inglesinho legal na escola, na cultura inglesa ou com um vizinho, é metida a fazer o que te dá na telha. Viu um texto que achou bonito em inglês, resolveu pôr em português. Um amigo leu e achou bacaninha, te descolou um teste numa editora, você fez, na maior despretensão, e uau! passou!

E vai fazendo uma coisa e outra, meio de hobby, porque tua praia é outra. Aí passa a ouvir a maior falação contra quem "não leva a PROFISSÃO a sério" e começa a se sentir supermal, tipo roubando lugar dos outros.

Meu conselho? Desencana. Cuide de sua vida e não se preocupe com a dos outros.


os tais direitos autorais

Obra de tradução porta direitos de autor. Isso é assente e indiscutível, e a lei que dispõe sobre o tema é a LDA 9610/98, disponível aqui.

Pois bem: você faz uma tradução, por iniciativa própria ou por encomenda. Essa obra de tradução é de propriedade sua, como um bem móvel qualquer. Para que uma editora possa publicá-la, você precisa transferir seus direitos sobre ela. Existem basicamente duas modalidades de transferência de seus direitos: ou por licença de uso ou por cessão. A licença de uso é, mal comparando, um empréstimo (se for uma licença gratuita) ou um aluguel (se for onerosa), e é por definição por tempo limitado e geralmente parcial. Já a cessão seria como uma doação, se for gratuita, ou como uma venda, se for onerosa. A cessão é em caráter definitivo, e pode ser parcial ou, mais habitualmente, total. A modalidade dominante em editoras - mas não, de maneira nenhuma, exclusiva - é a cessão. O instrumento por meio do qual se dá essa transferência de seus direitos sobre sua tradução para a editora que vai publicá-la é um contrato de edição chamado Contrato de Cessão de Direitos Autorais (CCDA).

Evidentemente, na imensa maioria dos casos essa cessão será onerosa, ou seja, você receberá uma retribuição monetária ao ceder seus direitos sobre sua obra de tradução.

E como se dá essa retribuição? Também pode variar: pode ser um determinado valor fechado, previamente combinado entre as partes; pode ser um valor por lauda (de que já falamos antes); pode ser um percentual sobre as vendas do livro publicado; pode ser um misto, um valor por lauda mais um determinado percentual sobre as vendas. Qualquer uma dessas formas de retribuição diz respeito a seus direitos autorais sobre a obra.

Foi por isso que eu disse que há um equívoco conceitual na tabela do Sintra, ao sugerir um valor X por lauda, "sem contar os direitos autorais". Ora, toda retribuição num contrato de transferência dos direitos de autor se refere necessariamente aos tais direitos autorais.

Ocorre que muita gente diz: "traduzo, a editora me paga, mas não recebo direitos autorais". De onde vem essa confusão? De duas fontes. A primeira delas, a identificação (errônea) entre direitos autorais e percentual sobre as vendas. A segunda fonte de confusão, e mais de fundo, é supor que, quando você faz uma tradução por encomenda de uma editora, você está prestando um serviço e não criando uma obra de tradução. Como se sua tradução fosse obra autoral apenas se você a tivesse feito por iniciativa própria, ao passo que, a pedido da editora, tratar-se-ia de um serviço. No caso da tabela do Sintra, as coisas se misturam ainda mais: o valor sugerido por lauda corresponderia à remuneração por uma prestação de serviços, enquanto os direitos autorais (entendidos como percentual sobre as vendas) teriam de ser adicionados à parte. Isso não tem base legal e é misturar alhos com bugalhos, contrato de transferência de direitos com nota fiscal de prestação de serviços ou recibo de pagamento a autônomo (RPA), bem móvel com serviço, obra autoral com empreita.

Em linhas gerais, assim é atualmente. Há alguns complicadores, mas não vamos entrar nisso agora. Cabe notar, porém, que na proposta de revisão da LDA atualmente em curso aventa-se a criação de um título específico dedicado às obras sob encomenda - se for aprovada, o quadro mudará um pouco. Mas, por ora, está valendo a LDA 9610/98, com os direitos autorais sobre a obra pertencendo ao tradutor e com o contrato de direitos autorais como instrumento da relação jurídica entre as partes.

Em tempo: salvo raras exceções, os contratos de cessão usados pelas editoras muitas vezes são escorchantes, leoninos, com cláusulas francamente abusivas. Mas esta é outra história.


alguma base

Aí você diz: Pois muito que bem, não vou me aviltar, não quero me sentir um pobre infeliz cruelmente explorado, não vou trabalhar feito louco para, no final, só receber uns trocados.
Mas que valor mínimo é esse que posso considerar não aviltante?

Bom, tem o que você estima em relação a si mesmo, e aí é algo meio inefável. Mas, em termos mais objetivos, o Sindicato Nacional dos Tradutores (Sintra) sugere R$ 26,00 a lauda.*

* Em sua tabela aqui, ao lado do valor sugerido vem "(direitos autorais à parte)" - trata-se de um equívoco conceitual, ao qual retornaremos depois. 

Embora o Sintra sugira esse valor para o ano de 2012, é o mesmo que está em seu site desde 2009. Ou seja, está parado faz uns três anos, se não mais. E antes disso o Sintra sugeriu R$ 24,00 a lauda por anos a fio. Considero um valor defasado para aquele patamar mínimo de dignidade do ofício que mencionei antes; mas não só: está defasado em termos comerciais mesmo, não só éticos. Tenho notícias de que um bom lotezinho de editoras está atualmente partindo de R$ 30,00 ou mais a lauda.

Então, ponhamos assim: o Sintra sugere R$ 26,00; eu considero minimamente decente - e, repito, tenho notícias de que assim é atualmente num número razoável de editoras - a base inicial de R$ 30,00 por lauda (para língua "normal"; texto pouco complexo; sem grande experiência anterior). É o que eu recebo? Não, recebo bem mais que isso, assim como muitos outros tradutores recebem bem mais, ou um pouco mais, ou mais ou menos mais. Pois aí entram outros fatores: experiência, confiabilidade, rapidez, que são alguns critérios que as editoras levam em conta na remuneração. Sobre esses outros critérios, falarei depois.

Em suma, iniciante, o que eu acho é o seguinte: se você não quer se sentir o mais degradado dos seres, não trabalhe por menos de R$ 30,00 a lauda. Em todo caso, se você tem algum resquiciozinho de compulsões autopunitivas e resolver aceitar algo entre R$ 26,00 e R$ 29,99, sempre pode se justificar invocando a tabela do Sintra e torcendo para logo "chegar lá".


resumindo

Assim, de acordo com as generalidades que apresentei até agora, eu diria que, para se iniciar como tradutor, é desejável ter:
  • bom domínio do português
  • razoável domínio da outra língua
  • respeito próprio para não se aviltar
  • disposição para correr atrás
  • paciência e persistência até conseguir sua oportunidade
Se você tiver a sorte de que leiam seu e-mail tão casualmente, tão confiantemente enviado a alguma editora, pode crer que o texto dele, a forma de apresentação, a linguagem utilizada já vão funcionar como uma espécie de seleção prévia. E não invente coisas, não queira enfeitar seu currículo: qualquer assistente editorial que venha a lê-lo, tem tarimba para ver o que é ouropel, o que é pra valer. Mais vale um currículo magrinho, mas sincero e honesto.

Em tempo: acrescento que não creio que enviar e-mails seja a melhor maneira de entrar em contato com uma editoria. Não é feio, não é ruim, não é errado, mas acho meio insuficiente.

generalidades V - e agora?

Bom, você foi doido - veja aqui - e embarcou numa canoa furadíssima. E agora? Salta fora? Toca o barquinho? Fica na esperança de que "algum dia eu chego lá"?

O problema é que esse "lá" era de onde você devia ter partido. E se você ainda tem alguma dúvida se deve continuar na doideira de trabalhar a troco de banana (ou for peanuts, como diz o povo), vou dizer o quê? Não dá pra dizer "boa sorte", porque não seria sincero - teria de ser uma sorte descomunal para que algum navio salvavidas viesse te resgatar desse patamar de desremuneração, com perdão pelo neologismo, que você aceitou e ao qual, numa dessas, você até acaba se resignando.

A única coisa sensata a fazer, a meu ver, é cair fora. Se você não consegue se instalar desde o começo num patamar minimamente decente - faça o teste do Don Pérignon que já sugeri -, melhor mudar de profissão ou batalhar por um novo ponto de partida, esquecendo essa mancada inicial.

generalidades IV - antes de mais nada

Ops, esqueci o pré-básico. Mas é tão absolutamente trivial que me escapou da cabeça. Todavia, é o ponto zero.

Você escreve direitinho? Sem entrar nas discussões infindáveis - e, para nossos objetivos aqui neste blog, totalmente irrelevantes - sobre norma culta, norma padrão, certo/errado, formal/informal, quando digo "direitinho", quero dizer: você escreve à todos? Sem excessão? Ou, de vez em quando esquece de alguém?


Atualização: gentilmente vieram me avisar que não é "excessão" e sim "exceção", não é "à todos" e sim "a todos". Sim, exatamente - é disso que estou falando! E acrescento: não é "Ou, de vez quando esquece de alguém?". Aqui há dois erros: a virgulação e a regência do verbo. O "esquecer" só pediria o "de" se estivesse na forma reflexiva: "se esquece de alguém"; do contrário, o "de" está sobrando e o correto seria "esquece alguém".

Desculpem se minha brincadeirinha confundiu alguém.

generalidades III - "não responderam meu e-mail, buá"

Você decidiu que acha lindo ser tradutor e quer começar. Todo imbuído de sua disposição, senta e escreve uns e-mails para algumas editoras. Fica todo feliz por sua iniciativa, esperando resposta.

Aí a resposta não vem. Passam-se os dias, e nada. Você fica triste, chateado, com raiva, desanimado, qualquer coisa. Quem sabe até tenta de novo, passa meses entulhando as caixas de e-mails das editoras com seu currículo ou sua carta de boas intenções, e continua esperando...

Então começa a achar que existe uma "panelinha", que o "mercado" é fechado, que só entra quem tem algum apadrinhamento, alguém que te indique, o tal QI, e fica todo ressentido.
Tsc, tsc, tsc. Reação boba e imatura.

Você faz ideia de como funciona uma editora? Como são as editorias internas? Quem recebeu teu e-mail? Quantos e-mails de interessados a editora recebe por dia? Você é tão especial assim que, só porque de repente teve uma epifania e achou que quer ser tradutor, basta escrever e terá uma tradução para fazer? Bom... nem aqui, nem na China, nem em profissão nenhuma...


generalidades II - lauda

Lauda é a unidade de medida dominante para a tradução editorial.

O tamanho dela varia um pouco de editora para editora, mas o mais utilizado - até onde sei - é o da lauda com 2.100 toques, contados os espaços. Assim, sempre que eu me referir a lauda, salvo indicação em contrário, será a de 2.100 com espaço.


generalidades I - remuneração

Uma (dupla) pergunta frequente de iniciantes é: editora paga bem? dá pra viver de tradução?

Minha reação imediata tem sido, há décadas, responder: sim, editora paga bem; sim, dá pra viver de tradução.

E aí entram alguns aspectos.

O mais singelo e universal deles é o que você considera "pagar bem". A questão me parece meio bobinha e comporta infinitas respostas - não vale a pena nos determos sobre ela.

O outro aspecto, mais concreto, é a variação dos valores pagos pelas editoras. Tem variação? Tem, sim, e bastante. Os valores pagos variam de editora para editora, de língua para língua, de grau de facilidade para grau de complexidade do original, da experiência da pessoa. Tudo isso também é meio autoevidente e bastante fácil de entender.

Mas suponhamos o mínimo: língua de partida "fácil" ou "normal", como dizem (inglês, francês, italiano, espanhol), obra de pouca complexidade, editora não muito generosa, digamos assim, experiência quase zero da tradutora.

Aí surge aquela coisa: tenho notícias de editoras que pagam valores assombrosamente baixos. Estas, nem vou levar em conta. Vamos falar apenas de editoras minimamente sérias em relação a seus colaboradores.

Você é iniciante, está doida para pegar qualquer coisa para começar e toparia condições escorchantes? Bom, vai com Deus, filha, boa sorte: é só o que posso dizer. Mas acho uma fria danada, e uma hora explicarei por quê.

Então, voltando: você é iniciante, mas não é doida. Aí você começa. Acho que, se você fizer as contas e concluir que, num ato de extravagância para uma ocasião única, poderá comprar um Dom Pérignon para comemorar o final de sua primeira tradução para uma editora, está bem começado.


apresentação

Este blog se destina a todos os interessados em tradução de literatura e humanidades, apresentando notícias e aspectos práticos do ofício.