18/12/2012

minha carreira de revisora I

Meu primeiro emprego na vida, embora informal, foi no Equipe, em São Paulo, onde eu estava fazendo cursinho, um semi, para prestar vestibular. Isso foi em 1971: eu tinha 16 anos, escrevia bem, e o Gilson, professor de redação do cursinho, me convidou a me juntar com seus assistentes que liam, corrigiam e atribuíam conceito às redações da moçada.

Foi lá que então comecei a trabalhar com o Carlinhos e o Zé Antônio - José Antônio Arantes, que veio a se tornar sensível e exímio tradutor. Quando fiz 17 anos, em novembro, os dois me deram de aniversário Memórias sentimentais de João Miramar Serafim Ponte-Grande do Oswald de Andrade, que a Civilização tinha acabado de lançar em suas Obras completas, e que guardo com o maior carinho até hoje.

O Zé trabalhava de revisor na Edgard Blücher e resolveu sair de lá, não lembro por qual razão. Então me deu o toque que ia abrir a vaga, e lá fui eu bater à porta da editora. Me apresentei, devo ter feito algum testezinho que não recordo e fui contratada a título de experiência. A Blücher é uma editora técnica, e eu tinha feito clássico - até tinha um inglês e um francês bem razoaveizinhos e algumas tintas de latim, mas nada de matemática, física, química ou biologia, a não ser o que se aprendia no ginasial. Imaginem! Mas era para revisão da segunda prova e aí o importante eram o português, a atenção e a capacidade de concentração.

Meu chefe era muito legal. Não lembro o nome dele, mas lembro sua figura: alto, magro, um pouco encurvado, com uns 40 anos, falava baixo e era calmo e atencioso. Andava sempre com um avental azul manchado de tinta e graxa, pois era da gráfica e ele que nos trazia as provas da linotipia e levava as provas corrigidas. Havia mais três na revisão, os três rapazes. Fiquei encantada em aprender coisas do ofício - basicamente as marcações, que não conhecia - e decorar palavras às quais eu devia prestar a maior atenção, que era onde mais passavam as gralhas: nunca me esqueci da biorrefringência (naquela época já era com dois erres e tudo junto, e a atenção que a gente tinha de prestar era no "n", pois parece que os gráficos viviam imprimindo "biorrefrigência") e do espácio-temporal (e jamais espaço-temporal nem espacio-temporal). Outras me fugiram da memória. Se eu pegasse alguma biorrefrigência e pedisse um "n", meu período de experiência estaria no papo, me diziam os colegas.

Fui bem, gostava, era sossegado, o lugar era legal: a editora ficava na Peixoto Gomide; eu morava em Santa Cecília e ia de ônibus até a Paulista, descia no ponto do Parque Trianon e atravessava aquele verdor lindo de manhã, admirando as teiazinhas de aranha que se estendiam entre as folhas das árvores e cintilavam de orvalho. Era um encanto para uma adolescente tão urbana feito eu. Fiquei uns dois meses na Edgard Blücher e então saí, por nenhuma razão em especial, talvez por ter em mim uma espécie de bicho-carpinteiro que não me deixava parar por muito tempo em lugar nenhum (mas só depois vim a constatar essa minha tendência) ou por não me sentir especialmente motivada em revisar livros cujo conteúdo transcendia meu entendimento e que eu não tinha a menor esperança de algum dia vir a apreciar, como merecem ser apreciados todos os livros que a gente lê.

Depois fiquei sabendo que a Abril, que na época era o máximo, ia fazer um teste de revisão. Periodicamente (acho que a cada seis meses) ela anunciava que ia fazer um teste coletivo a tal dia, a tal hora, choviam uns cem candidatos, todos se sentavam numa sala, em cadeiras de escola, e recebiam aquela folha corrida imensa de comprida, a prova tipográfica, para revisar. Fui lá, sentei, fiz o teste, passei com 92% ou 94% de acerto, o que, embora tenha me decepcionado um pouco, causou um pequeno cataclismo no departamento editorial. A coordenadora mandou me chamar e disse que a média geral costumava ser de 45% de acerto e que contratavam quem alcançasse 60%, e que nunca tinha visto uma coisa daquelas. No mesmo dia me encaminhou para uma psicóloga da empresa, que fez uma entrevista comigo e me mandou escrever um texto por livre associação, ali na frente dela. Escrevi umas três ou quatro páginas com um ar meio frenético, pois estava achando aquilo divertido e resolvi dar uma teatralizada meio bretoniana na coisa.

Parece que ficaram um pouco impressionados e me propuseram entrar direto para a redação da Veja (que na época era bem diferente do que é hoje). Não quis. Finquei pé e quis ficar na revisão. A senhora de lá, a tal coordenadora, até ficou meio chateada e fez cara feia, e, para não parecer muito grosseira, falei que era por causa do horário da faculdade (nesse meio tempo, eu tinha entrado na USP, em ciências sociais, mas achei muito chato, pois mais da metade dos professores tinha se exilado, aquilo parecia um cemitério, e me transferi para a filosofia, igualmente chata, mas isso é outra história). Como revisor fazia turno direto de cinco ou seis horas, eu podia trabalhar de manhã e fazer a faculdade de tarde, enquanto na redação era período integral. A senhora ainda insistiu, dizendo que o salário era muito melhor, que na redação era folgado, era só eu deixar um casaco ou um livro na cadeira ou na mesa, que todo mundo fazia isso, eu podia tirar a tarde e ninguém ia dizer nada. Como, além de bicho-carpinteiro, tenho algumas características de mula, aí sim que empaquei e disse, revisão ou nada.

Foi assim que entrei como trainee na Abril. Lá foi sensacional como experiência, embora eu tenha cumprido apenas meus trinta dias e depois puxado o carro. (Continua aqui)