28/02/2013

piiiiiiiii VI

caro amiguinho, iniciante ou aspirante à tradução: ame a palavra. leia benveniste, por exemplo (eu gosto) - ou os clássicos do judaísmo, ou os hermeneutas do século XV. você encontrará substância rica, densa, com elementos muito, muitíssimo mais pertinentes do que esse fetichismo barato do tal do contexto que, se te apertarem, você nem vai saber dizer o que é e vai invocar dez mil coisas diferentes, desde a mais trivial construção sintática de uma frase até uma cosmologia qualquer na qual você mesmo se perde.

encontre seu coração. se você quer traduzir, se você acha que gosta de traduzir, é porque em algum lugar de teu íntimo você ama a palavra. o resto é o resto.

quanto à generalização barata a que foi submetido o pobre do "contexto", veja aqui.

"contexto"

atualmente tenho visto o termo "contexto" lançado a torto e a direito em análises e comentários sobre tradução, com uma ampla e indiscriminada prodigalidade e com um grau de indefinição que o transforma em praticamente qualquer coisa que não seja uma determinada palavra ou expressão em pauta.

nesse âmbito variegado, o "contexto" pode ser a frase em que uma determinada palavra ou expressão está inserida, pode ser o assunto de que trata o texto onde ela está inserida, pode ser a carga conotativa do termo na época em que o autor escreveu, pode ser a cultura em que viveu o autor, pode ser a época literária em que se inseria aquela obra, pode ser a história em que se insere aquele léxico ou mesmo aquele conceito, pode ser, mais rasteiramente, a finalidade a que se destina aquele texto no presente - em suma, qualquer coisa, intra, extra, inter, supra, infra, trans, ad.

por isso, quando ouço ou leio a palavra "contexto", usada como uma varinha de condão - "depende do contexto", "qual é o contexto?", "ah, mas o contexto!" -, sinto alguns arrepios. a generalidade, a generalização, aliás, costuma mesmo me dar alguns arrepios. contexto? de que contexto, afinal, está-se falando quando se fala em contexto?

esta é minha primeira birra, e a principal, que tenho contra essa vaguidade, esse amplo campo vazio a que se atiram todas e quaisquer perguntas, dúvidas, interesses e curiosidades. é uma birra de abrangência tão ampla quanto a do atual uso insciente e indiscriminado da palavra "contexto".

tenho algumas outras birras, bem mais específicas, que nem vêm muito ao caso, pois pertencem a uma esfera de reflexões um pouco mais, digamos, particularizadas sobre as questões de sentido.

de todo modo, para dar o contexto da noção de contexto, até para entender um pouco melhor o que isso significa e como essa noção se desprende de seu próprio "contexto", eu sugeriria a consulta às fontes, à gênese mesma do conceito: malinowski, com seu "contexto de uso". tendo isso como base, fica mais fácil acompanhar a ampliação do conceito, a perda de sua especificidade e a facilidade com que agora abriga qualquer coisa ou o fetichismo que o leva a ser visto como uma espécie de fórmula mágica.

na prática, IV


tsc, tsc

take your time; não se apresse. se a rapidez lhe vem naturalmente, ótimo; mas o mais importante é ansiedade zero.

23/02/2013

na prática, III


ao traduzir, o que você vê quando lê?

22/02/2013

na prática, II

continuando com exemplos práticos, para tentar observar o tipo de construção da narrativa, ainda com mrs dalloway:

Outra coisa que me parece encantadora é a liberalidade com que Woolf usa as várias formas do gerúndio. Esse trechinho aqui achei especial:
Rezia, sitting at the table twisting a hat in her hands, watched him; saw him smiling. He was happy then. But she could not bear to see him smiling. It was not marriage; it was not being one’s husband to look strange like that, always to be starting, laughing, sitting hour after hour silent, or clutching her and telling her to write. 
Mais um trechinho que achei um encanto, tremendamente reforçado com a profusão de adjetivos e advérbios de modo, é quando Elizabeth está passeando de ônibus:
for a pirate it was, reckless, unscrupulous, bearing down ruthlessly, circumventing dangerously, boldly snatching a passenger, or ignoring a passenger, squeezing eel-like and arrogant in between, and then rushing insolently all sails spread up Whitehall. 
muito bonito isso aqui:  bearing down ruthlessly, circumventing dangerously, boldly snatching a passenger, sobretudo quando o segundo advérbio posposto praticamente se cola ao seguinte, anteposto ao verbo.

na prática, I

comentei em algum lugar que, para mim, o mais importante é conseguir entender o texto, isto é, tentar reconstituir o tipo de estruturação narrativa e sobretudo estilística que dá sustentação ao discurso. dou um exemplo que transcrevo do blog que montei enquanto fazia a tradução de mrs. dalloway, aqui:
Que frase linda! É dentro da igreja, da abadia de Westminster, um fiel que acabou de rezar, quer sair e tem de passar pelo banco, e Miss Kilman, preceptora de Elizabeth, filha de Clarissa, está ali rezando na ponta do banco por onde o homem quer sair. Ela não cede logo a passagem e ele fica esperando:
But, as he stood gazing about him, at the white marbles, grey window panes, and accumulated treasures (for he was extremely proud of the Abbey), her largeness, robustness, and power as she sat there shifting her knees from time to time (it was so rough the approach to her God — so tough her desires) impressed him, as they had impressed Mrs. Dalloway (she could not get the thought of her out of her mind that afternoon), the Rev. Edward Whittaker, and Elizabeth too.
Note-se a quantidade de interpolações entre parênteses, três vezes no mesmo período! O equilíbrio e o paralelismo: além das três interpolações, três elementos (adjetivados) da igreja, três elementos (simples) de Miss Kilman, três elementos (nominais) ao final do período.
O detalhe flaubertiano: shifting her knees; a linda assonância de rough/tough nas duas construções em paralelo; a proximidade dos dois impressed, que quase se juntam, um no final da longa oração, outro no começo da próxima: impressed him, as they had impressed. Essa capacidade de fazer tudo o que está no período confluir para um ponto, o qual então se revela central - puxando o começo e puxando o fim para se encontrarem no impressed duplicado: é soberbo!
E como a ligação, ou melhor, a sucessão nuclear dos dois impressed permite que o texto passe do homem e do interior para outras pessoas - três também, note-se - e para o exterior: o foco que sai do zoom e se abre. E aquele too sozinho, no final do período, tão descendente, tão parco e definitivo em seu aparente anticlímax! 
E as imagens? Que Miss Kilman mexa os joelhos, como que incomodada com a dureza, a aspereza do caminho... E os dois her praticamente seguidos, um referente a Clarissa e outro a Miss Kilman, the thought of her out of her mind! É tudo muito elaborado.
(afterthought: a insistência no três terá alguma conotação trinitarista, dado o contexto da cena dentro da abadia?)
e o que resulta de toda essa composição tão elaborada, como descrição emocional e psicológica dos personagens e para a visualização do leitor? não é espantoso?

20/02/2013

o outro lado III: custos

Você olha o preço de capa de um livro e acha que as editoras ganham os tubos. Grandes grupos ganham, claro, mas mais no volume do que necessariamente no preço.

Isso é de conhecimento geral, mas só para ficar registrado aqui neste blogue. Um cálculo dos custos e da composição do preço, bastante simples, mas razoavelmente preciso e que é utilizado em muitas editoras, é o seguinte (foi-me fornecido por uma editora muito séria, de porte médio, há cerca de quarenta anos na praça):
Os custos de um livro são os seguintes: gráfica e papel: 50%; editoração (capa, paginação e arquivo): 20%; tradução: 30%. O livro é vendido ou consignado à livraria por X, a preço de capa de 2X, ou seja, 50% fica para a livraria.
No caso de obra em domínio público, não se paga direito autoral, mas, caso o original não esteja em domínio público, deve ser incluído um percentual de 20% para compor o preço final. Na realidade, em termos de custos, é 10%, mas, como o livro é vendido com 50% de desconto para os livreiros, os 10% do preço final correspondem a 20% da metade.
Naturalmente, neste esboço falta a margem de lucro da editora, sem falar do preço de aquisição dos direitos de publicação a 10%, pois sabemos que em muitos casos o valor pago à editora original chega a ser astronômico. Em todo caso, é uma média que se aplica a grande parte dos casos.

Note-se que, no esquema acima, o custo de tradução está lançado a 30%, mas sei que algumas das editoras com as quais trabalho lançam a 25%. E certamente há variações de editora para editora, de edição para edição e assim por diante. O que quero dizer é que, de uma maneira ou outra, com maiores ou menores discrepâncias, o item mais oneroso no editorial é a tradução.

Acho importante desmistificar uma ideia que às vezes vejo por aí, de que as editoras são entidades benemerentes que deveriam atender aos caprichos de tradutores meio despistados ou que todas elas são empresas entregues à pura ganância e ao mais selvagem capitalismo. Não creio que seja uma visão sequer aproximada do que conheço do mundo editorial. Editoras não são vilãs, em sua maioria. Vilãs são as fraudadoras, claro; as que roubam traduções alheias, as que não colocam créditos de tradução, as que obrigam os tradutores a assinar contratos abrindo mão do direito ao nome, as que jogam o preço da lauda lá embaixo e coisas do gênero.

o outro lado II: quanto tempo

Você sabe qual é a estimativa do tempo de giro de uma edição com tiragem padrão de 3 mil exemplares? E digo estimativa formal, de cálculo de planilha da empresa. Não? Dezoito meses. E isso é apenas uma estimativa média para o cálculo do tempo de retorno do capital investido. Muitas edições levam de três a cinco anos, outras simplesmente encalham. E a empresa não pode parar, senão some do mercado.

o outro lado I: um em dez

Aliás, espero que seja de conhecimento geral que, em suas planilhas, as editoras calculam que, de dez livros publicados e numa média geral, nove não se pagam e é o décimo que tem de cobrir seus próprios custos, o déficit dos outros nove e dar lucro para a empresa.

O leigo há de arregalar os olhos e perguntar: ué, mas por quê? Porque uma editora não pode parar. Além de ter de manter todo o operacional da empresa funcionando, tem de garantir perpetuamente seu espaço nas livrarias, entre outras coisas.

O leigo continua de olho arregalado e pergunta: mas então por que não publica só best-seller? Porque best-seller não cai do céu, ué. E a grande maioria do catálogo de uma editora ou é de fundo ou é de risco, sacou?