06/04/2014

falsos falsos amigos




amiguinho, você que decorou toda ou boa parte da tabelinha dos chamados falsos amigos em inglês, talvez valha a pena não esquecer que eventual às vezes é "eventual", sim, senhor, que eventuality é "eventualidade", que apparent também pode ser "aparente", que pretend pode ser "pretender" (e "pretender" em português não significa apenas ter intenção de) e assim por diante. manuais e guias práticos de tradução e listas de "falsos amigos" são muito úteis, claro - mas, e até por definição, costumam apenas resumir e simplificar as coisas, só isso.

05/04/2014

o que faço?


estou traduzindo um livro de terry eagleton, chamado how to read literature. o autor dedica nada menos que seis páginas de comentários e análises a um poemeto infantil, uma nursery rhyme, como dizem, bem antigo e muito conhecido:

Baa, baa, black sheep,
Have you any wool?
Yes, sir, yes, sir,
Three bags full;

One for the master,
And one for the dame,
And one for the little boy
Who lives down the lane.

nessas horas, a questão que se coloca ao tradutor, a meu ver, é manter o foco no principal. aqui, o principal é acompanhar os aspectos destacados pelo autor. um deles, por exemplo, é o fato de que todas as palavras, salvo três (masterlittle lives), são ou contam como monossílabos. outro é que são versos trocaicos, isto é, com a tônica caindo na primeira sílaba do pé. outro, além do metro muito rigoroso, um padrão de rimas bastante solto, além de toantes como dame lane. e ainda o léxico extremamente simples e a sintaxe idem, e mais outras considerações de ordem variada. é sobre isso que eagleton discorre, e escolheu esse recitativo infantil apenas para ilustrar aspectos mais gerais.

assim, o que faço eu: um literal "béé, béé, carneiro preto"? ou, como em algumas traduções, "béé, béé, carneirinho"? isso não teria o menor sentido, pois resultaria em algo, em toda e qualquer hipótese, muito afastado dos aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos, líricos etc., que interessam ao autor. 

mantenho, portanto, o poeminha no original, coloco logo abaixo dele, entre colchetes, uma tradução mais ou menos literal, com os versos separados por barras, e posso prosseguir tranquilamente com a dissecação apresentada por eagleton, reproduzindo em inglês um ou outro termo avulso em que ele vem a se deter mais demoradamente.

e não há nenhuma dúvida: há perdas em tradução, claro, sempre, evidente. mas que ao menos se escolha o que perder e o que preservar.


para outros comentários sobre o processo de tradução de how to read literature, veja o blog de acompanhamento, "como ler literatura", aqui.


31/03/2014

o andor

aspirante ou tradutor iniciante: quando você, por qualquer razão que seja (espera-se, em geral, que seja por seus méritos), tem a sorte ou a eventualidade de ser indicado por alguém, minha sugestão é: não tome a iniciativa ou a disponibilidade de te indicarem a uma editora como nada líquido e certo - não significa que você se tornará "tradutor profissional" da noite para o dia - significa apenas que tem alguém disposto a bancar você. é um mercado difícil, competitivo e, se deixar, muito arrochado. o mundo não se fez num dia. mas ainda continuo a achar o mercado editorial um dos mais flexíveis, num mundo tão dominado por especialidades reais ou supostas. ainda é um mundo onde inteligência e dedicação podem ter valor.

19/03/2014

caso verídico



eu, tradutora querendo criar uma relação profissional com uma editora:

em meus primeiros contatos com você, que é a editora da casa, que nunca me viu mais gorda, encho meu e-mail de "vc", de "rsrsrs", digo que quero muito trabalhar, que espero uma relação "legal" entre "vc e eu", perpetro algumas barbaridades verbais, ressalto que nunca traduzi quase nada, não anexo currículo, por pequeno que seja, só boto uns links e olhe lá, ainda sou capaz de soltar como despedida um sorrisinho tipo dois-pontos-tracinho-fecha-parênteses. mando meu tão alegrinho e espontâneo e-mail, parecendo uma postagem de facebook, e depois fico esperando receber o teste que até me dispus a fazer, se "vc" quiser.

bom, talvez eu não me tenha dado conta, mas FIZ o teste. só não passei.




18/01/2014

não é bem assim

a dupla matéria sobre tradução e tradutores que saiu no caderno G, da gazeta do povo de hoje, é legal, a meu ver, porque fala de nossa atividade, e nosso ofício merece e precisa ser conhecido pelos leitores: disponível aqui.

mas creio que o enfoque da jornalista não reflete bem a realidade editorial e a atividade do tradutor, e acaba passando uma ideia que muitos de nós tradutores combatemos arduamente, qual seja: "Um dos fatores que pode colaborar para isso [a frequência de más traduções no mercado] é falta de profissionalização. São poucos os que conseguem sobreviver apenas da tradução".

não é bem assim: o fato é que a jornalista conversou com dez pessoas, das quais apenas duas são tradutoras "profissionais", isto é, pelo que depreendi, aquelas que vivem exclusivamente da atividade de tradução (entre as duas, uma delas sou eu).

mas não é que não existam ou sejam "poucos os que conseguem sobreviver apenas da tradução". mais provavelmente, essa conclusão - a meu ver infundada, no que se refere à tradução editorial como segmento profissional - só aflorou porque a jornalista, entre os critérios de seleção que ela deve ter utilizado para escolher seus dez entrevistados, não incluiu este de "sobreviver apenas de tradução". mesmo os valores citados por lauda não são muito exatos, e eu também discordaria da afirmação "Escolher a obra a ser traduzida é um privilégio" (pois, embora seja verdade que "O mais comum é as editoras indicarem o título", daí não decorre que seja "um privilégio" escolhermos e indicarmos à editora o que queremos traduzir).

em suma, reconheço-me muito pouco na dupla matéria. eu sugeriria que algum veículo da grande imprensa fizesse uma extensa e cuidadosa matéria, como esta do caderno G, mas escolhendo dez tradutores que de fato vivam do ofício de tradução ou nele tenham sua principal fonte de renda. somente assim creio que poderíamos ter um retrato um pouco mais realista de nosso ofício.

em tempo: não é que falte profissionalização ao setor de tradução editorial. o que há é que a profissão de tradutor é reconhecida, mas não regulamentada, o que é muito diferente de lhe "faltar profissionalização".